“A inteligência, no sentido que aqui emprego a palavra... é a capacidade de apreender a verdade.” Assim começa o livro do Professor Olavo que ele cogitou chamar “O olho do Sol”. Nome misterioso e um tanto quanto simbólico, que parece carregar um ocultismo por trás, motivo até por talvez terem decidido o abandonar na derradeira hora de publicar o livro. O que o Olavo queria dizer com esse nome cogitado a princípio?
Em muitas aulas do COF e em seu livro sobre os quatro discursos, “Aristóteles em Novas Perspectiva”, o Olavo subscreve por completo a gnosiologia aristotélica, reconhecendo que nossa inteligência não opera diretamente sobre os dados dos sentidos, mas precisa dos elementos acumulados na memória para deles abstrair as essências ou esquemas eidéticos dos entes.
“Para Aristóteles, o conhecimento começa nos dados dos sentidos. Estes são transferidos à memória, imaginação ou fantasia, que os agrupa em imagens, segundo suas semelhanças. É sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização com base nas quais criará os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios.”1
A nossa capacidade de aprender a verdade, então, dependeria de termos a imaginação aguçada e a retenção suficiente para, nesse processo, extrairmos das coisas o que elas são. A gnosiologia já aqui centra o foco do conhecimento da verdade na subjetividade individual, na medida em que essas afirmações internas do que as coisas são correspondam o mais fidedignamente aos dados sensitivos que chegaram por primeiro, idéia que ficará fixada na fórmula escolástica de que a verdade é a adequação da inteligência ao objeto (Veritas est adequatio intelectus et rei).
Na aula 15 do COF, porém, o professor Olavo exemplifica a partir de um estudo feito com baralhos que há uma operação direta da inteligência, que se expressa na reação dos participantes, antes deles terem representado o suficiente o que acontecia. Era colocado para os participantes duas pilhas de carta vermelhas e azuis e a cada carta que tiravam recebiam ou tinham de pagar uma certa quantidade em dinheiro, de acordo com as cartas. No entanto, as cartas estavam viciadas. As vermelhas premiavam uma alta quantidade em dinheiro, mas davam multas ainda maiores, enquanto as azuis oferecendo um prêmio menor, valiam por oferecerem uma multa ainda mais baixa. Os pesquisadores perceberam que os participantes levavam cerca de 50 rodadas para perceber o que se passava, ou seja, após retirar cerca de 50 cartas percebiam que a pilha azul era a que mais valia a pena e cerca de 80 rodadas para serem capazes de explicar o que acontecia. Durante todo o teste eles estavam com sensores de suor na mão, indício evidente, quando aumentado, de estresse.
Mas a maquininha que media o suor nas mãos percebia que, a partir da décima jogada, o suor começava a aumentar quando as pessoas pegavam a carta da pilha vermelha, e que a partir daí havia uma tendência a pegar menos cartas das pilhas vermelhas e mais das pilhas azuis. Isto quer dizer que os indivíduos já tinham tomado a decisão de preferir as cartas das pilhas azuis quarenta jogadas antes de perceberem que tinham tomado esta decisão. Como nós podemos analisar isto?2
Esse estudo como que diz que antes dos participantes serem capazes de pensar sobre o que acontecia eles já sabiam a verdade. O raciocínio do qual resulta a conclusão depois das 80 jogadas, é o que o professor Olavo chamará de “evidência indireta ou prova”3: tendo sido capaz de reter a experiência em memórias nítidas, o sujeito tem os símbolos mentais estáveis o suficiente para montar raciocínios sobre sua própria experiência e assim concluir que uma pilha vale mais a pena que a outra. Note, é o processo gnosiológico descrito por Aristóteles, em que a inteligência apreende a essência do que se passou a partir das imagens estáveis na memória. A primeira percepção, causa do suor na mão na décima jogada, não pode ser chamada de pressentimento ou intuição, porque houve ali um raciocínio correto, que o professor Olavo nessa aula chama de indutivo, feito com a palma da mão, por assim dizer. Naquela pequena amostragem inicial o participante já havia aprendido as informações que a presença daquelas cartas passava, mesmo ainda não sendo capaz de pensar sobre a experiência.
É preciso fazer um adendo quanto ao sentido da palavra intuição nessa aula. O sentido corrente que se usa é o de pressentimento, uma sensação interna de que as coisas são como esse frio na barriga faz pensar que sejam. O Olavo toma a concepção corrente dessa palavra, a princípio, mas a intuição pra ele tem um significado diverso, muito consistente e fundamentado em sua gnosiologia. Não é porque outros autores usam a mesma palavra que se está falando da mesma coisa. Nesse sentido, podemos perfeitamente substituir o termo “raciocínio indutivo” por “intuição”, o que ele de fato faz nas aulas subsequentes, na medida em que vai elaborando o tema, e nas suas apostilas. E podemos fazer porque intuição para ele é reconhecimento de uma presença, porque “a intuição só é intuição do presente”4, presença que se pode fazer fisicamente ou mentalmente. O que acontece nas 10 primeiras jogadas é uma evidência intuitiva, feita sobre uma pequeniníssima amostragem.
O pensar e o intuir, aqui então, ganham um sentido diverso:
A inteligência é um órgão... que só serve... para captar a verdade. Às vezes ela entra em operação através do pensamento, às vezes através da imaginação ou do sentimento, e às vezes entra diretamente, num ato intelectivo-ou intuitivo- instantâneo, no qual você capta alguma coisa sem uma preparação e sem uma forma representativa em especial que sirva de canal à intelecção. Outras vezes há uma longa preparação através do pensamento, da imaginação e da memória, e no fim você não capta coisíssima nenhuma: cumpridos os atos representativos, a intelecção a que se dirigiam falha por completo; dados os meios, a finalidade não se realiza.5
Essa intuição aqui descrita é o que o professor Olavo chamará de Intuicionismo Radical, dizendo que todo conhecimento é intuitivo necessariamente6. Não existe conhecimento lógico, não existe conhecimento racional, só o conhecimento intuitivo. Quando concluo que Sócrates é mortal porque todo homem é mortal, e Sócrates é homem, estou captando intuitivamente o nexo entre as premissas, intuição que é simplesmente o “reconhecimento de uma presença”. Ou seja, a mortalidade está presente em Sócrates porque ele é homem, porque faz parte dessa espécie. Se captássemos esse nexo somente por meio de raciocínios, de uma maneira não intuitiva, seria necessário incluir outro termo no raciocínio para chegar à conclusão, e mais outro termo ao termo, ad infinitum. A intuição que dá origem à conclusão é chamada de evidência indireta ou prova, porque a mente une, reagrupa ou elabora os símbolos mentais, trabalhando para encontrar a intuição.
Acontece que esses elementos primários trabalhados pela mente também devem ser apreendidos. E eles nos chegam necessariamente por evidência intuitiva. A evidência é um conhecimento que é verdadeiro por si mesmo e que, portanto, não pode ser negado de maneira unívoca. Uma evidência direta é que estamos no lugar em que estamos,
Se, porém, nego essa evidência, assegurando: “não estou aqui agora”, essa frase não tem sentido unívoco, pois tanto pode significar que não estou no lugar a que me refiro quanto pode significar que não é a esse lugar que estou me referindo.7
Para poder fazer o clássico raciocínio que conclui que Sócrates é mortal, tenho de saber que Sócrates é homem e que os homens morrem por evidência intuitiva: eu reconheço na presença de Sócrates que ele é homem: as pinturas, os relatos de seus diálogos e os livros sobre ele me passam essa informação, assim como a presença das pessoas ao me redor, sejam velhas, sejam novas, me dizem que elas um dia vão morrer.
Há, pois, um conhecimento primeiro, que é o fundamento e a experiência de medida de todo conhecimento verdadeiro: o conhecimento da luz. Mais do que a simples evidência intuitiva, com a luz acontecem três intuições necessariamente simultâneas:
“O homem primitivo, cada homem primitivo, não pode ter-se conscientizado da luz solar sem, no mesmo ato e indivisivelmente, conscientizar-se da sua própria visão e, mais ainda, do contraste entre ver e não ver. Não pode ter tomado consciência da luz sem, no mesmo ato e indivisivelmente, perceber que a luz é a condição determinante do próprio ato de ver.”
“Ela inaugura, para o homem, a conexão entre o interno e externo, entre subjetividade e mundo, que sustenta a crença básica na veracidade dos nossos conhecimentos.”8
A tripla intuição originária é simultaneamente o conhecimento de um objeto, que é a fonte sensível de luz, de uma intuição psíquica da capacidade de ver, já que o olho não tocado pela luz nada conhece, e a intuição racional de que sem a luz não se veria. Nesse ato o objeto conhecido e o conhecimento que adquiro são o mesmo: o ser é o conhecer.
A partir desse ponto o projeto do Olavo fica inteligível, pois é “a total redução da gnosiologia à ontologia”9. Isso fica ainda mais evidente quando analisamos o que é a gnosiologia: Se ela enquanto ciência pretende descrever o que é e como se dá o conhecimento humano, significa que ela tem de ser perfeitamente aplicável ao próprio ato que deu origem à teoria. Dito de outro modo, a gnosiologia tem de ser capaz de explicar a minha própria capacidade de conhecer o meu modo de conhecimento enquanto o realizo. Ou seja, toda gnosiologia verdadeira necessita da tripla intuição, pois a unidade entre o objeto que conheço, intuição primeira, o ato que realizo, intuição segunda ou psicológica, e a intuição racional de que só conheço o meu conhecimento pelo ato de conhecer, que o ser que conheço e o ato que sou e realizo são o mesmo, intuição terceira, são necessariamente inseparáveis. Mais ainda, para que eu seja capaz de conhecer o meu modo de conhecimento, necessariamente eu já deveria o ter realizado alguma vez, com algum objeto. Sua presença enquanto ato é fundamento do seu conhecimento posterior. Toda crítica do conhecimento partiu, portanto, com o passo errado, buscando o fundamento do erro no conhecimento. Ora, como esse erro poderia ser conhecimento se o meu conhecimento falha em entender coisas tão simples? Que as coisas são um mistério só apreendidas, caoticamente, a partir de sua aparência fenomênica pelas minhas formas a priori, tudo bem, mas se o conhecimento se dá assim como descrito, como poderia ter sido apreendido se não como um conjunto de aparências fenomênicas de um processo gnosiológico misterioso e incognoscível que tenho de crer que é assim porque todo mundo conhece o conhecimento da mesma maneira? Faltou para Kant a tripla intuição: ele não foi capaz de analisar a sua gnosiologia a partir de sua própria gnosiologia.
Toda gnosiologia anterior, desde seus primórdios aristotélicos até os tempos atuais, resolveu seguir o caminho da descrição do processo lógico-racional, são simbolicamente dizendo, gnosiologias lunares, pois são descrições de um ato já realizado, o conhecimento. Gnosiologia Lunar mais ainda o cepticismo e todas as críticas do conhecimento, de Descartes à Hume, de Kant à Comte, fechando a lua em si mesma, ciclo de obscuridade sem a luz solar: é possível, por isso, chamar a gnosiologia inaugurado pelo Olavo de Gnosiologia Solar, já que tudo o que ele diz parte da certeza fundamentada de que temos conhecimentos objetivos e, por seu enfoque ao processo real de conhecimento, não mental e lunar como os outros, mas direto e radiante, tudo o que ele diz se aplica ao que ele está dizendo: o ser e o conhecer são um.
Sua filosofia marca, então, a passagem das trevas à luz, pois a radiante luz solar penetra as trevas do solipsístico eu cartesiano, reatando o ego ao mundo com seus raios, pois “neste ato está para o homem a raiz mesma da noção de verdade, como unidade do perceber e do percebido, do interno e do externo, do pensamento que está no sujeito com o pensado que está no objeto” e
O símbolo tradicional segundo o qual o Sol é o olho do Mundo e olho é o sol do corpo não é simples metáfora, mas uma correspondência funcional verdadeira, escorada no nexo causal real que une a luz à visão.10
Não há contradição em subscrever a gnosiologia aristotélica e o intuicionismo radical junto da tripla intuição simultaneamente. Ele muda o foco: o Olavo funda toda descrição de como se dá o conhecimento racional, descrição que posso chamar de lógica, no processo real de conhecimento, sem o qual ficaríamos isolados na solidão cartesiana. A partir da tripla intuição, baliza do conhecimento objetivo, podemos adentrar na gnosiologia lunar, que reflete a luz do sol em 4 etapas correspondentes aos 4 discursos, do possível ao certo, e descrever, sem perder a origem, como se dá o processo do conhecimento na razão, vendo como os dois estão dependentemente interligados.
Macaé, RJ. 29/09/23
José F. M. Motta
Olavo de Carvalho, Aristóteles em nova perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos- Campinas, SP: VIDE Editorial, 2013. pg. 35
COF, Aula 15
Olavo de Carvalho, Inteligência e Verdade: ensaios de filosofia – Campinas, SP: Vide Editorial, 2021 pg. 65
Ibid. pg. 190
Ibid. pg. 16
COF, Aula 15
Olavo de Carvalho, Inteligência e Verdade: ensaios de filosofia – Campinas, SP: Vide Editorial, 2021 pg. 64
Ibid., pg. 184
Ibid., pg. 135
Ibid., pg. 188